Nos últimos anos, a inteligência artificial (IA) deixou de ser um conceito restrito a empresas de tecnologia para se tornar uma ferramenta presente em diversos setores, incluindo o universo dos cartórios. Com a promessa de automatizar processos, reduzir erros humanos e agilizar o atendimento, a IA passou a ser utilizada em tarefas como análise de documentos, verificação de assinaturas, gestão de filas e até interpretação preliminar de textos de atos.

No entanto, a adoção dessas tecnologias também traz riscos consideráveis, especialmente quando envolve a manipulação e o armazenamento de dados sensíveis. Cartórios lidam diariamente com informações pessoais, patrimoniais e jurídicas de cidadãos e empresas — dados que, se expostos, podem gerar prejuízos irreparáveis. Nesse contexto, o perigo mais grave reside no vazamento de informações por falhas de segurança, mau uso ou ataques cibernéticos.

Os cartórios concentram um volume expressivo de dados críticos: escrituras públicas, registros de imóveis, certidões de nascimento e óbito, pactos antenupciais, procurações, entre outros. Esses documentos contêm informações completas sobre identidade, endereço, patrimônio e histórico familiar — um verdadeiro “tesouro” para criminosos cibernéticos.

Um conjunto de informações extraído de um cartório pode permitir fraudes sofisticadas, como falsificação de procurações e escrituras, transferências indevidas de imóveis ou até a criação de identidades falsas para lavagem de dinheiro.

A implementação de IA em cartórios normalmente ocorre em dois cenários:

• Soluções internas – softwares desenvolvidos ou adquiridos pela própria serventia, com armazenamento local ou em nuvens privadas.
• Serviços terceirizados – uso de plataformas externas, muitas vezes hospedadas em servidores de grandes empresas de tecnologia, com processamento de dados fora do controle direto do cartório.

O problema é que, para funcionar de forma eficiente, a IA precisa ser “alimentada” com dados reais. Quando essas informações são enviadas para servidores externos, há risco de exposição devido a ataques cibernéticos, falhas de configuração que deixam bases acessíveis a terceiros, uso indevido por fornecedores para treinar modelos próprios sem autorização e acesso não autorizado por funcionários ou prestadores de serviço. Esse risco se agrava quando os dados não passam por processos robustos de anonimização e criptografia antes de serem tratados pela IA.

O vazamento de dados em cartórios pode gerar consequências gravíssimas:

• Para os titulares: prejuízos financeiros, fraudes bancárias, invasões patrimoniais, chantagens e exposição indevida de informações.
• Para os cartórios: perda de credibilidade, responsabilização civil e administrativa, multas previstas na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e possibilidade de ações judiciais coletivas.

Mais do que um problema tecnológico, um vazamento coloca em risco a segurança jurídica do país, já que documentos falsificados ou adulterados comprometem a confiança nos registros públicos.
A Lei nº 13.709/2018 (LGPD) estabelece regras claras para o tratamento de dados pessoais no Brasil, aplicáveis também aos cartórios. Em caso de vazamento, a serventia pode ser obrigada a notificar os titulares afetados, informar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e adotar medidas corretivas imediatas. As sanções incluem multas de até 2% do faturamento anual, limitadas a R$ 50 milhões por infração.
Boas práticas para uso seguro de IA nos cartórios

Para reduzir os riscos de vazamento, é fundamental adotar medidas como:

• Anonimização dos dados – sempre que possível, remover ou mascarar informações pessoais antes do processamento.
• Criptografia – tanto em trânsito quanto em repouso, garantindo que, mesmo em caso de invasão, os dados não possam ser lidos.
• Armazenamento local ou em nuvem privada – evitando servidores compartilhados sem garantias contratuais sólidas.
• Auditorias periódicas – revisão das configurações de segurança e fluxos de dados para identificar vulnerabilidades.
• Treinamento de pessoal – conscientização dos funcionários sobre riscos e boas práticas no uso da IA.
• Contratos rigorosos com fornecedores – cláusulas de confidencialidade e penalidades em caso de vazamento.

A inteligência artificial tem potencial para modernizar e tornar mais eficientes os serviços cartorários, mas essa transformação não pode ocorrer à custa da segurança dos dados dos cidadãos. Afinal, muitas empresas que oferecem soluções de IA baseiam seus modelos em custos de processamento, infraestrutura de servidores e estratégias de negócio. No fim das contas, a tecnologia deve servir para proteger - e não para expor - o patrimônio e a identidade das pessoas.

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